Poesia

Pedro J. Nunes

Das páginas de sal 

Sextina 

Senhor, não sou digno que o poema
adentres. São folhas de outono e dor
os meus olhos no anúncio de Tua luz.
O cárcere, a escuridão, a imagem
Gasta é tudo que me resta, o meu cântico
Tem apenas o pulsar do mistério.

O hálito da alcova, este mistério
forjado em janeiros, este poema
em fúria, tudo decompõe um cântico
em sombras e reticente uma dor
improvável. Posta na areia a imagem
gasta, a página vagará em luz.

É mesmo possível, Senhor, que a luz
seduza a noite e do pó o mistério
se levante e desfaça de Tua imagem
o susto. As sombras, o meu poema
desesperado fará luzir, dor
e retina ressoarão num cântico

primávero e de flor em flor o cântico
de Teus anjos encherá de boa luz,
forjada a vigília e contas, a dor
do cárcere. Clarefeito mistério,
Tua presença tornará o poema
um vale fértil, e feliz a imagem

Do meu rosto no Teu. Senhor, imagem
una seremos na derme do cântico.
Lavro nas cinzas do verbo o poema
possível, o verbo se fará luz,
retiro da inquietude algum mistério
e desfaço, verônica, esta dor

de existir. Tuas mãos na apócrifa dor
é bom fermento, ágata, é imagem
de cheiro suave. Desfeito o mistério,
os janeiros desintegram num cântico
as palavras vãs. Decomposto em luz,
recebe em fel, em ferro, meu poema.

Dilui no poema a inigualável dor,
ausente da luz, a pálida imagem
galgará no cântico o seu mistério.

 

Das páginas de cinza

Sonetos

I

No canto mais escuro da floresta
os deuses se assentam. Uma troca
cúmplice de olhares frios congrega
a vara: tem início a metagoge.

Até nós chegam as vozes gélidas
em sons destroçados, negros, ferozes:
nada entendemos, é tudo mistério
e dor. Ninguém nos terá a resposta.

Uns em desespero, outros em cinza
volatilizam, aqueles no peito
esmurram a culpa. Eu, pobre de mim,

tartamudeio: — Não, e, já afeito
à reticência dos pétreos porcins,
me estremeço canalha, rarefeito.

II

Levanta da terra um cheiro de fumo
— os homens agonizam casuísticos —,
eu me recolho ao poço mais profundo
da terra, só, fumarento, sísmico.

Louca se vai no vendaval, espuma
do temporal — baba de cães de hospício! —,
a imunda Nação, essa mui rotunda
herdeira do caos: não haja indigno

deus que justifique a nossa dor sóbria
nem imponha sobre nós paz de anjos,
essa paz resignada e hipócrita.

Minha dor não é senão uma branca
raiva, babenta, de quem, só, os próprios
nós espumeja, louco, sacripanta.

Estes poemas foram publicados na revista Contexto, do Departamento de Línguas e Letras da Ufes, 1993. Deles, disse Reinaldo Santos Neves na retrospectiva publicada na revista Você nº 19, de janeiro de 1994:

Na revista Contexto, do Departamento de Línguas e Letras da Ufes, Pedro J. Nunes publicou uma sextina que considero um dos voos mais altos da poesia capixaba em 1993. Primeiro porque é muito bem cinzelada; segundo porque quem é que já se meteu a fazer sextina nesta terra de trovadores?

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