Um carreiro entre tantos

Pedro J. Nunes

Ouvi dizer, há muito tempo, que Zé Benedito nasceu num carro de bois. Temos uma compreensão muito sutil das coisas que ouvimos na infância. Podemos transformá-las numa miragem que se consome em pouco tempo, mas podemos também transformá-las numa lenda. Para mim, ficou a lenda. E, por não desmenti-la em mim mesmo, aí nasce mais uma.

Imaginava, então, meu pai, parido entre esteiras, recebendo a visita dos Reis Magos, iluminados os seus primeiros dias pela luz da Estrela do Oriente, as juntas de boi pacificamente colocadas adiante, ruminando as horas.

As lendas nascem do povo, da massa leiga, da boiada humana (estas duas expressões, tomei-as emprestadas a uma crônica do Carlos Drummond de Andrade). Foi com essa compreensão, profundamente cravada em minhas lembranças, que retornei recentemente a São José do Calçado. Tanto tempo depois, reencontro meu pai carreiro outra vez, homenageado por haver trilhado com seu garruchão, suas juntas de boi e sua destreza com o ofício um trecho da história dessa terra. 

Certo é que Zé Benedito ganhou a vida com o carro de bois. Quando me lembro de meu pai cavando a vida, tenho uma ainda inexata compreensão do atrito da madeira do carro em movimento, madeira que geme e se contorce na condução da história da gente simples e anônima como ele. Fácil não terá sido a vida de meu pai, isso é certo. Como não terá sido a vida de muita gente, nem por isso menos digna.

São José do Calçado tornou-se, para mim, um depósito de lembranças. Creio que é nisso que mais resida sua significação. Já não vejo pessoas nas ruas, sentado num banco da praça, tateando o breu das noites frias. Posto em sossego noite adentro, vejo passearem sobre o calçamento de suas ladeiras as abantesmas de uma memória que teima contra o tempo em que vivo, o meu próprio tempo.

Reencontrei meu pai em sua roupa de carreiro. Ao vê-lo assim, difícil tramar a fronteira entre meus próprios sonhos de passado e a realidade brutal do presente. Um bom chapéu, a calça de brim cáqui, a camisa largada sobre o corpo compunham a mesma indumentária de tantos anos passados. Diferente em meu pai, só as botinas. Naquele tempo em que Zé Benedito foi carreiro, descalço é que andava, rachando os pés em nossa história nem sempre justa. Ao lado de meu pai, comecei a ver os velhos parceiros: padrinho Luisinho, Zé Roberto, Zé Pretinho (este, agora morto, fui encontrá-lo na infância, a primeira vez, sentado debaixo do eixo, escondido do calor, uns olhos brilhantes saltavam da pele negra, um menino como eu).  E me vi a mim também, transformado em candeeiro (a pronúncia corrente entre os carreiros é candieiro) e a meu irmão, que gritava com os bois como meu pai gritava e a este provocava tanto riso.

Foi assim que meu pai desfilou, carreiro do ano numa festa bonita que eu não conhecia em São José do Calçado (bendita é a cidade que reconhece seus profetas), carreiro outra vez. Em cima do carro de bois, cinco netos: Rogerinho, Mariana, Ana Cláudia, Amanda e Ana Paula. Atrás do carro de bois, dona Anna, parceira da vida inteira, com uma inacreditável vitalidade, acompanhava meu pai, e nós, os filhos, noras e genros ali íamos também.

Observando meu pai, no entanto, vi quem desfilava verdadeiramente. Era o tempo, esse ardiloso senhor de ímpetos indomáveis, dominado sob o garruchão com que o velho carreiro guiava o carro de bois pelas ruas de São José do Calçado. O tempo era o terceiro boi de guia, cabisbaixo e obediente como deve ser o boi. Meu pai congregava a seu lado seus velhos fantasmas, seus mestres, uma multidão de sombras acompanhava meu pai pelas ladeiras de São José do Calçado.

Eia, adiante, boi, que é hora de viver.

A história de uma cidade tem várias caras. Nem sempre a verdadeira, escondida atrás de heróis insignificantes e lendas incipientes. Pensando em nossa própria história, nem sempre consigo evitar a dor. Minha gente é notável pela teimosia, uma gente que parece carregar séculos de angústia e uma obstinação febril. Realizadores silenciosos, concluo pelo meu pai, que encontro frequentemente em estado de contemplação. Minha gente, é como se construíssem poemas rudes em uma língua silenciosa. Zé Benedito é um desses homens, capaz de gestos brandos como construir açudes para passar horas observando os peixes sem o menor desejo de pescá-los.

Pouco antes do cortejo, na concentração, um dos bois de coice de tio Carrinho, irmão mais novo meu pai, resolveu rebelar-se. Criou uma bela confusão no meio da rua, causou ajuntamento do povo e fez uma festa à parte. O dono do boi insistia, os carreiros trouxeram sua experiência e o boi continuava numa revolta que deixou alguns circunstantes menos experientes temerosos do desfecho da festa. Eu, posto em sossego, observava a luta de meu tio contra a teimosia do animal. Para os circunstantes parecia uma obstinação, para mim não era senão mais uma das tantas cenas que vi na infância. A coisa ia mais ou menos por aí quando ouvi uma senhora, aflita por todos os poros, advertir, muito preocupada:

— O dono desse boi devia desistir, isso vai acabar mal, é um perigo.

— Eu conheço esse homem, minha senhora, e essa raça, e posso dizer-lhe: esse boi desfila nem que seja morto dentro do carro de bois — não pude conter-me em dizer-lhe.

Mais tarde, o apresentador da festa, um sujeito simpático e falastrão, justificava os problemas enfrentados pelos carreiros que desfilaram:

— Vocês (dirigia-se à plateia meio aflita meio encantada) estão pensando que os bois desfilariam cordeiros? Eh, minha gente, lá no eito, no meio do mato, vida de carreiro não tem facilidades, não.

O povo, sim, é que constrói a história, embora os heróis ilegítimos a usurpem. E assim é que corre o tempo.
Mais tarde, conversando com Zé Benedito sobre o incidente, disse-me ele:

— Não houvesse problemas, teríamos uma bela festa. Em compensação, deixaríamos de mostrar tudo quanto eu e meus companheiros de ofício enfrentamos a vida inteira.

Eu, olhando a cordilheira do Bandeira, que vira para a Alegoria, aquiesci, e ruminei meu silêncio diante dos verdadeiros heróis de uma terra que talvez nem seja digna deles, heróis belamente representados pelo meu pai, Zé Benedito, pelos velhos mestres carreiros e por todos aqueles que desfilaram pelas pedras das ladeiras de São José do Calçado o passado de uma construção silenciosa e quase sem brilho. 

Esta crônica foi escrita no final de 1998, ano em que foi instituída a Festa do Carro de Bois de São José do Calçado.

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